segunda-feira, 20 de junho de 2011

ENCONTROS

Acordou com dor nas costas. Não era bem dor, mais um desconforto. Nem era no lugar onde às vezes doía, mas abaixo das omoplatas. Pensou, tenho de começar a fazer ginástica, alongamento, só caminhar três vezes por semana não basta.
- Isso é dos nervos. Você tem que arrumar uma amante pra trepar - lhe diz a amiga desbocada - , porque com seu marido sei que não transa mais.
- Trepar a gente trepa - ela respondeu sorrindo meio sem graça - , mas com parcimônia - e riram as duas, daquela intimidade de colegiais.
Notou que andava mais inquieta e distraída. Os filhos pareciam mais barulhentos, tudo no marido a irritava, até o barulho de sua mastigação e sua mania de pigarrear. O trabalho estava mais cansativo. Seus pensamentos fugiam mais vezes da realidade que, embora monótona, era um conforto. Este é o meu lugar no mundo, pensava, retornando para casa no fim de cada tarde. Esta é minha tarefa no mundo, pensava, fazendo as compras com a lista do supermercado na mão, o filho menor, já adolescente, empurrando o carinho, emburrado.
Num outro dia, saindo do banho e olhando-se no espelho nua, examinou-se de frente, o ventre um pouco flácido, os seios nem de longe os seios gregos que o marido beijava com tanto ardor nos primeiros tempos. O cotidiano convívio havia-lhes roubado o fervor. Avaliou seu corpo também de lado, viu com pavor que havia duas maras longas espáduas abaixo, duas listras nascentes logo debaixo dos ombros e descendo até quase a cintura: convexas, saltadas como cicatrizes enormes, dois dedos de largura.
Tentou tocar-se meio sem jeito, difícil de alcançar, mas conseguiu: aquilo era mágico, ao toque de seus dedos começaram a palpitar. Pensou: Se for câncer é um câncer muito esquisito, e de tão grande nem adianta falar porque devo estar morrendo mesmo. Mas o rosto estava bom, a pele saudável, a cor razoável, não tinha ar de doente terminal. Decidiu esperar um pouco para ver no que dava. Sua mãe fazia assim quando eram pequenos: Se daqui a três dias continuar doendo, a gente procura o médico.
- Você anda distraída, hein mãe - lhe disse o filho mais velho um dia.
O marido não percebia nada. Mas ele não costumava mesmo prestar muita atenção. Insatisfeita com tudo, a mulher resolveu trocar a cor do cabelo, de um castanho comum por um quase-vermelho brilhante. Saiu do salão sentindo-se uma rainha egípcia. Quando o marido entrou no fim do dia, ela o aguardava ansiosa por dividir com ele ao menos aquela novidade e, radiante porque achava aquela transformação uma beleza, perguntou assim que o viu na soleira:
- Notando alguma coisa nova, bem?
Ele parou, sorriu inseguro, olhou em torno, olhou para ela, abriu mais o sorriso e finalmente disse:
- Você trocou o tapete?
Ela não se zangou, lembrando quantas vezes fora impaciente com ele, quantas vezes criticara seus gostos e ironizara suas pequenas manias, quantas vezes fora pouco generosa. Aquela era a vida deles. Aquele era seu lugar no mundo. E não era inteiramente ruim.
Certa vez ela estava pensando em alguma bela coisa erótica, o que há tempos não fazia, sozinha em casa depois do banho, e tocou-se como há muito não se tocava, pensando: Bom, se vou morrer mesmo, ao menos me divirto um pouco antes. Pois os sinais nas costas estavam mais destacados, e o desconforto maior, com um ímpeto que precisasse muito sair dali - então na hora do supremo prazer deu um salto e sentou-se, achou que explodia, e de repente começou a alçar-se acima da cama.
Olhou assustada sobre o ombro esquerdo, e notou que nas suas espáduas se abriam duas asas. Com esforço e um terror inicial, conseguiu aterrissar de novo, quase batera com a cabeça no teto. Andou até o banheiro, com cuidado para não levantar voo ao menor movimento.
E, quando se contemplou, achou-se belíssima, logo aprendeu a manejar, abrir, fechar, levantar, dobrar de novo como um leque enorme. E - mais estranho de tudo - não teve medo, mas alegria. Era isso: não estava morrendo de um câncer. Era mágico, ela estava virando anjo. E a dimensão desse segredo quase a derrubou.
No começo foi difícil acomodar as asas debaixo da roupa, pois mesmo que dobrassem direitinho faziam um certo volume. Começou a usar roupas mais folgadas. E como ninguém em casa ligasse muito para ela, logo se sentia à vontade com o seu segredo.
Mas dava-lhe uma certa pena não ter a quem contar aquilo. O marido, nem pensar. A vida deles estava tão organizada, que não permitiria uma interferência daquelas, nunca se sabia quando as coisas começariam a desmoronar, e aí nada mais poderia conter a ruína. Nem a melhor amiga entenderia. Pois era uma boa mulher, divertiam-se um pouco juntas, mas um assunto assim, estranheza demais, talvez a afastasse.
Iam interná-la como doida; iam querer operar e cortar as asas; iam botar na televisão como monstro; iam isolar e manipular em algum centro de pesquisas, sabe-se lá. Para aliviar a agonia secreta dessa possibilidade, de noite saía par ao pátio da casa, abria as asas e voava. Como uma mariposa gigante, sobrevoava o cotidiano, enxergando tudo de outra perspectiva, mais completa e mais vasta.
Num daqueles volteios, descobriu, não muito longe, um homem apenas olhando o céu da sacada de seu apartamento. Gostou dele, gostou daquele seu jeito, e ficou observando, pousada num telhado. Descobriu onde ele vivia; onde trabalhava; por onde andava no cotidiano. E começou a encontrá-lo fingindo que era acaso, e tomaram juntos um cafezinho, depois foram ao cinema, e finalmente decidiram que estavam apaixonados e tinham de viver aquilo.
Ela teve muito medo de que ele descobrisse, e do que faria ao descobrir. Mas como paixão é glória e insanidade, consentiu, e encontraram-se, e quando ele insistiu em que tirasse a roupa, da primeira vez ela não quis, fazendo-se de envergonhada.
Em outro dia, porém, ficou mais impaciente e ansiosa, e decidiu arriscar, mas pediu enquanto tirava a roupa:
- Vamos fazer em pé?
E quando, na penumbra, se abraçaram e logo começaram a gemer, e se esfregar, e se procurar, ela sentiu entre horrorizada e feliz que suas grandes asas se desdobravam. Mas o amante não se assustou. Não se afastou. Apertou-se mais a ela, dizendo, vem comigo, vem comigo, vem comigo.
E abriu suas asas também.