Acordou com dor nas costas. Não era bem dor, mais um desconforto. Nem era no lugar onde às vezes doía, mas abaixo das omoplatas. Pensou, tenho de começar a fazer ginástica, alongamento, só caminhar três vezes por semana não basta.
- Isso é dos nervos. Você tem que arrumar uma amante pra trepar - lhe diz a amiga desbocada - , porque com seu marido sei que não transa mais.
- Trepar a gente trepa - ela respondeu sorrindo meio sem graça - , mas com parcimônia - e riram as duas, daquela intimidade de colegiais.
Notou que andava mais inquieta e distraída. Os filhos pareciam mais barulhentos, tudo no marido a irritava, até o barulho de sua mastigação e sua mania de pigarrear. O trabalho estava mais cansativo. Seus pensamentos fugiam mais vezes da realidade que, embora monótona, era um conforto. Este é o meu lugar no mundo, pensava, retornando para casa no fim de cada tarde. Esta é minha tarefa no mundo, pensava, fazendo as compras com a lista do supermercado na mão, o filho menor, já adolescente, empurrando o carinho, emburrado.
Num outro dia, saindo do banho e olhando-se no espelho nua, examinou-se de frente, o ventre um pouco flácido, os seios nem de longe os seios gregos que o marido beijava com tanto ardor nos primeiros tempos. O cotidiano convívio havia-lhes roubado o fervor. Avaliou seu corpo também de lado, viu com pavor que havia duas maras longas espáduas abaixo, duas listras nascentes logo debaixo dos ombros e descendo até quase a cintura: convexas, saltadas como cicatrizes enormes, dois dedos de largura.
Tentou tocar-se meio sem jeito, difícil de alcançar, mas conseguiu: aquilo era mágico, ao toque de seus dedos começaram a palpitar. Pensou: Se for câncer é um câncer muito esquisito, e de tão grande nem adianta falar porque devo estar morrendo mesmo. Mas o rosto estava bom, a pele saudável, a cor razoável, não tinha ar de doente terminal. Decidiu esperar um pouco para ver no que dava. Sua mãe fazia assim quando eram pequenos: Se daqui a três dias continuar doendo, a gente procura o médico.
- Você anda distraída, hein mãe - lhe disse o filho mais velho um dia.
O marido não percebia nada. Mas ele não costumava mesmo prestar muita atenção. Insatisfeita com tudo, a mulher resolveu trocar a cor do cabelo, de um castanho comum por um quase-vermelho brilhante. Saiu do salão sentindo-se uma rainha egípcia. Quando o marido entrou no fim do dia, ela o aguardava ansiosa por dividir com ele ao menos aquela novidade e, radiante porque achava aquela transformação uma beleza, perguntou assim que o viu na soleira:
- Notando alguma coisa nova, bem?
Ele parou, sorriu inseguro, olhou em torno, olhou para ela, abriu mais o sorriso e finalmente disse:
- Você trocou o tapete?
Ela não se zangou, lembrando quantas vezes fora impaciente com ele, quantas vezes criticara seus gostos e ironizara suas pequenas manias, quantas vezes fora pouco generosa. Aquela era a vida deles. Aquele era seu lugar no mundo. E não era inteiramente ruim.
Certa vez ela estava pensando em alguma bela coisa erótica, o que há tempos não fazia, sozinha em casa depois do banho, e tocou-se como há muito não se tocava, pensando: Bom, se vou morrer mesmo, ao menos me divirto um pouco antes. Pois os sinais nas costas estavam mais destacados, e o desconforto maior, com um ímpeto que precisasse muito sair dali - então na hora do supremo prazer deu um salto e sentou-se, achou que explodia, e de repente começou a alçar-se acima da cama.
Olhou assustada sobre o ombro esquerdo, e notou que nas suas espáduas se abriam duas asas. Com esforço e um terror inicial, conseguiu aterrissar de novo, quase batera com a cabeça no teto. Andou até o banheiro, com cuidado para não levantar voo ao menor movimento.
E, quando se contemplou, achou-se belíssima, logo aprendeu a manejar, abrir, fechar, levantar, dobrar de novo como um leque enorme. E - mais estranho de tudo - não teve medo, mas alegria. Era isso: não estava morrendo de um câncer. Era mágico, ela estava virando anjo. E a dimensão desse segredo quase a derrubou.
E, quando se contemplou, achou-se belíssima, logo aprendeu a manejar, abrir, fechar, levantar, dobrar de novo como um leque enorme. E - mais estranho de tudo - não teve medo, mas alegria. Era isso: não estava morrendo de um câncer. Era mágico, ela estava virando anjo. E a dimensão desse segredo quase a derrubou.
No começo foi difícil acomodar as asas debaixo da roupa, pois mesmo que dobrassem direitinho faziam um certo volume. Começou a usar roupas mais folgadas. E como ninguém em casa ligasse muito para ela, logo se sentia à vontade com o seu segredo.
Mas dava-lhe uma certa pena não ter a quem contar aquilo. O marido, nem pensar. A vida deles estava tão organizada, que não permitiria uma interferência daquelas, nunca se sabia quando as coisas começariam a desmoronar, e aí nada mais poderia conter a ruína. Nem a melhor amiga entenderia. Pois era uma boa mulher, divertiam-se um pouco juntas, mas um assunto assim, estranheza demais, talvez a afastasse.
Mas dava-lhe uma certa pena não ter a quem contar aquilo. O marido, nem pensar. A vida deles estava tão organizada, que não permitiria uma interferência daquelas, nunca se sabia quando as coisas começariam a desmoronar, e aí nada mais poderia conter a ruína. Nem a melhor amiga entenderia. Pois era uma boa mulher, divertiam-se um pouco juntas, mas um assunto assim, estranheza demais, talvez a afastasse.
Iam interná-la como doida; iam querer operar e cortar as asas; iam botar na televisão como monstro; iam isolar e manipular em algum centro de pesquisas, sabe-se lá. Para aliviar a agonia secreta dessa possibilidade, de noite saía par ao pátio da casa, abria as asas e voava. Como uma mariposa gigante, sobrevoava o cotidiano, enxergando tudo de outra perspectiva, mais completa e mais vasta.
Num daqueles volteios, descobriu, não muito longe, um homem apenas olhando o céu da sacada de seu apartamento. Gostou dele, gostou daquele seu jeito, e ficou observando, pousada num telhado. Descobriu onde ele vivia; onde trabalhava; por onde andava no cotidiano. E começou a encontrá-lo fingindo que era acaso, e tomaram juntos um cafezinho, depois foram ao cinema, e finalmente decidiram que estavam apaixonados e tinham de viver aquilo.
Ela teve muito medo de que ele descobrisse, e do que faria ao descobrir. Mas como paixão é glória e insanidade, consentiu, e encontraram-se, e quando ele insistiu em que tirasse a roupa, da primeira vez ela não quis, fazendo-se de envergonhada.
Em outro dia, porém, ficou mais impaciente e ansiosa, e decidiu arriscar, mas pediu enquanto tirava a roupa:
- Vamos fazer em pé?
E quando, na penumbra, se abraçaram e logo começaram a gemer, e se esfregar, e se procurar, ela sentiu entre horrorizada e feliz que suas grandes asas se desdobravam. Mas o amante não se assustou. Não se afastou. Apertou-se mais a ela, dizendo, vem comigo, vem comigo, vem comigo.
E abriu suas asas também.