domingo, 18 de março de 2018

Liberdade em Dois Atos

How could a heart like yours ever love a heart like mine? 
How could I live before? How could I have been so blind? 
You opened up my eyes... 

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Imagem de @bteixxeira do clipe Fran`s Café - Froid

Liberdade em dois atos

     Ela estava sentada na varanda, era mais um dia de verão. Eu andava mais um dia pela rua, fone no ouvido ouvindo minha banda de indie rock favorita, quando virei e me deparei com ela. 
     Short jeans curto, cabelos em cachos, uma blusinha vermelha e um all star. Estava sentada, com um olhar entediado, enquanto se abanava com um marcador de páginas. No colo, um livro. O vento não era o suficiente para abafar todo o calor que fazia naquele dia, por isso dava para ver que seu rosto estava suado. Ao primeiro olhar, sua beleza não me deixava piscar. 
     Mas foi apenas quando reparei no livro que ela segurava no colo que meu coração realmente parou. Ela lia Sartre. Desde que eu entrara naquele curso de Filosofia, era a primeira vez que eu me deparava com alguém do meu bairro lendo alguma coisa que prestasse. Era raro ver alguém lendo alguma coisa, na verdade. Pra quem vem da periferia, livros são raros, e ler é um ato de rebeldia. Ainda mais Sartre. 
     Eu queria falar com ela, queria ser sua amiga. Mas, simplesmente aparecer e dizer que reparei no que ela lia, não daria muito certo. Tudo isso se passou muito rápido na minha mente, mas quando desviei o meu olhar do livro e olhei o seu rosto novamente, ela estava com uma sobrancelha arqueada. Olhava para mim como quem indaga. E eu não sabia o que responder. 
     Criada por uma família cristã, tradicional em todos os sentidos, nunca me atrevera a colocar em palavras os sentimentos conflitantes que existiam dentro de mim. Sendo de um bairro periférico, sendo mulher, a luta para conseguir acessar uma universidade fora árdua demais para que eu ainda demonstrasse que questionava os dogmas que me foram impostos. Mas eu havia conseguido. Cursava Filosofia em uma universidade federal. Estava feliz. Ou quase. Ainda havia coisas que eu não ousava conversar com ninguém. Primeiro porque as pessoas do meu convívio pessoal jamais entenderiam. Segundo porque as pessoas do meu convívio acadêmico eram "liberais demais" para entender que eu vivesse no dilema que me subjugava. No fundo, parecia que eu não me encaixava em nenhum lugar. Em nenhum padrão. Mas ali, vendo aquela pessoa linda lendo Sartre, parecia que tudo fazia sentido. Parecia que tudo se encaixava. Parecia que eu finalmente encontrava um lugar. 
     Resolvi me aproximar. Atravessei a rua, coloquei o fone no pescoço, sorri. Ela continuava me olhando com a sobrancelha arqueada, esperando. Então eu disse: - Sartre, não? 
     Eu sei, era a coisa errada a se dizer, mas eu não sabia como me aproximar. Eu nunca sabia como me aproximar de garotas. A primeira vez que percebi que sentia algo diferente por algumas garotas, a mesma coisa diferente que eu sentia por alguns garotos, achei que era coisa da minha cabeça. Mas era inevitável. As vezes aparecia alguma menina nova na escola e eu não sabia como conversar com ela. Não sabia o que dizer. Assim como com alguns garotos. Aprendi a colocar uma máscara para encarar essas pessoas. Era uma máscara de indiferença. Por isso, muitos se afastaram de mim. Aparentemente, eu não era uma garota simpática, normal. Aparentemente, eu era antipática. Ser antipática e antissocial foi o que me definiu naquela fase chata do final da adolescência. Quando eu disse que iria cursar Filosofia, foi só a confirmação de que eu não era normal. Não era de se estranhar que eu não tivesse contato com nenhum amigo da época do colégio mais. Não fazia sentido manter a amizade com pessoas que não te conheciam de verdade. 
     E ali estava eu, perante aquela garota linda. Que lia Sartre. Era difícil saber o que dizer naquele momento. Era difícil saber como pronunciar tudo que estava dentro de mim. Eu pensava em como eu havia feito uma pergunta estúpida quando era sorriu e disse: - Sartre, sim! Conhece? Ninguém por aqui parece ligar a mínima para Sartre. 
     - Sim. Já li os três. Tenho Sursis, se for do seu interesse continuar essa leitura dolorida. 
     Foi assim que tudo começou. Os cachos. Um short jeans. Um all star. E Sartre. Saímos pela primeira vez para conhecer uma biblioteca da cidade. Dentre os jardins, demos o nosso primeiro beijo. Era a primeira vez que eu beijava uma garota, e a sensibilidade daquele beijo, daquele toque... preenchia todas as minhas necessidades. 
     Nos amamos durante dez meses. Foram mais de dezessete brigas. Todas por ciúmes. Era difícil para ela entender que eu sentisse atração por garotos também. Era muita gente para ter ciúmes, dizia ela. Eu, naquele período e com aquele relacionamento secreto, ia amadurecendo. Sartre me fazia entender a noção da liberdade, e a angústia dessa consciência de ser livre. Eu não queria estar em uma gaiola. Eu simplesmente não conseguia. 
     Ela tinha a minha idade, cursava Administração e estava com aquele livro simplesmente porque era o único da estante do seu irmão que tinha um marcador de páginas dentro. Nunca havia lido Sartre. Sonhava em ser dançarina, mas fazia a faculdade que o irmão indicara por segurança. Eramos muito diferentes. Ela me ensinou o que era amar, e que eu não precisava ter vergonha. Ao seu lado eu cresci, amadureci e entendi mais de mim mesma. Mas o encanto acabou, em algum momento. Estar com ela fazia o meu coração bater mais forte, o seu cheiro era viciante e o seu sorriso fazia eu acreditar que tudo no mundo tinha uma razão e um propósito. Mas em algum momento percebi que estar com ela era renunciar a quem eu era e a quem eu queria ser. Não por ela ser mulher. Mas por eu querer mais da vida. 
     Lembro do dia em que vi o anúncio de bolsa na Federal. Paris, um ano. O dia em que eu vi o anúncio eu entendi que aquele seria o nosso fim. Lembro vagamente dos dois meses que envolveram o momento em que eu me candidatei até o momento do meu embarque. Lembro das entrevistas, e das discussões com meus pais. No fim, consegui bolsa de estudos completa. Moradia, alimentação, passagem. Eu queria ir. Precisava estar lá. E foi o que eu fiz. 
     Uma semana antes, o celular vibrou, e quando apertei o botão já sabia o ódio que eu iria ouvir.
     - Se você for, nunca mais olhe na minha cara. 
     Ela desligou. 
     No dia do embarque, eu me despedi dos meus pais e de alguns poucos colegas que estavam lá. Quando ia passar pelo portão, o irmão dela apareceu. Fingi que era um amigo, abracei e agradeci a sua ida. Ele me entregou um embrulho. 
     - Boa sorte. 
     Já no avião, resolvi abrir. No pacote, uma foto nossa, sorrindo, dos primeiros dias, quando acreditávamos que tudo era possível apenas por termos nos encontrado. Atrás da foto, com a letra dela, havia apenas uma frase:
     "Você está condenada a ser livre".